Os sinos nunca tocam neste lado do monte (1)
O fim do mundo começou no seu início, costumava dizer. Disse-o muitas vezes, até que um dia se suicidou.
Foi apenas mais um dos meus amigos a tornar-se intocável. Vi-os a todos no dia seguinte, os poucos que restavam, no conversor 323.
O corpo de Sors Iell foi trazido no seu caixão reciclável, vestido de material reciclável, até ao conversor, para ele próprio ser reciclado. Estranha "reencarnação" a que sofríamos: tanto podíamos "reencarnar" num bife sintético como na gola do casaco dum idiota qualquer. Mas voltávamos sempre, separados por mil coisas diferentes.
Magda Sivur tinha as olheiras mais negras do que o habitual. A dose que tomava devia ser maior agora, e cresceria sempre, até o cérebro lhe estoirar. A droga não era uma coisa boa...
- É duro vê-los cair.
Respondi-lhe com um movimento da cabeça.
- Vamos para casa de quem? – inquiriu.
- Do Ernst.
- E cabemos lá?
- Agora, talvez...
O corpo embrulhado no plástico transparente que era o seu caixão ultrapassou finalmente o pequeno pórtico. O tapete rolante continuou com o seu ron-ron de gato cansado por alguns momentos e depois parou. Tinha acabado.
Voltámos as costas ao silêncio e arrastámo-nos para fora do edifício, um grupo enterrado em sobretudos e pensamentos. Onze máquinas desiludidas de tudo.
O batedor particular do Conversor 323 acercou-se de nós com o seu sorriso oficial afixado no rosto.
- Desejam um transporte? Vou chamar um.
Passámos alguns momentos a olhar-nos mutuamente, observando as expressões que tentavam parecer vazias de emoção.
- Já aqui está – disse o batedor. Dirigiu-se para a pesada porta de aço e accionou o mecanismo que a fez rolar para os lados. Depois pegou na longa vara metálica. Tinha uns dois metros de comprimento e estava ligada à rede eléctrica. O funcionário agarrou-a melhor pela parte revestida a plástico e avançou.
A multidão ululante afastou-se, gritando de dor e deixando o caminho aberto até ao transporte. Seguimos em passo rápido para o seu interior. Eu fui o último. Os motores rugiram e o transporte descolou.
O edifício em que Ernst vivia era de construção antiga, por isso a sua pista de aterragem, no topo da construção, era acanhada.
Começara a chover. A mesma chuva gelada e castanha, saturada de sujidade. Ernst morava no 12º piso.
- Sentem-se por aí. Vou fazer algum café.
Fiquei sentado entre a estante e o aparelho de TV, sobre uma pilha de livros que crescia do chão até ao meu traseiro. O espaço era pouco.
Déjane sentara-se junto a mim, ou melhor, abaixo de mim, no chão.
- Há um mês foi o Andra, há três foi a Mirsine, qual será o seguinte, Paul?
Encolhi os ombros, incapaz de lhe responder, mas ela também não esperava uma resposta.
Ernst reapareceu com um tabuleiro pleno de canecas fumegantes. Agradeci-lhe a minha. O líquido era espesso e negro mas não era café. Pelo que sabia, café verdadeiro era coisa que já não existia. Aquilo, quando muito, era uma imitação burlesca de um sucedâneo do café, um filho bastardo de um seu parente afastado.
Filhos era uma das muitas coisas que não tinha. Nem eu, nem qualquer elemento do grupo. Para se ter um filho era necessário que o possível pai e a possível mãe tivessem mapas genéticos perfeitos, e que pelo menos um dos dois tivesse bastante dinheiro. Também não sentia desejo em oferecer um mundo daqueles a um hipotético filho meu.
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